segunda-feira, 28 de abril de 2014

Autocontrole é só controle, e tudo é controlado.

Encontram-se na literatura sobre análise do comportamento referências ao termo autocontrole que associam o conceito a processos os mais diversos: procrastinação, obesidade, impulsividade em crianças, cuidados de saúde, entre vários outros. Em outras abordagens da psicologia o termo tem vários significados: força de vontade, capacidade para manter o equilíbrio emocional, para controlar os impulsos, para decidir sobre a própria vida, etc.
Na linguagem diária usamos o termo com esse sentido de força interior, compatível com as teorias da psicologia cognitiva, mas incompatível com a análise do comportamento, que não usa um agente interior para explicar o comportamento. É importante notar que a análise do comportamento não trabalha só com observáveis. Como já escrevi em outro texto:
O que é comportamento? Tudo o que a pessoa faz que possa ser analisado, inclusive o que ela diz, o que ela pensa, o que ela fala para si mesma, inclusive o que ela fala sobre o que pensa.
O que penso antes de decidir não é explicação, é parte do comportamento a ser explicado. Como qualquer comportamento, pensar é escolha, examinar as alternativas não ocorre no vácuo.
 Autocontrole não é conceito da análise do comportamento. Esse “auto” sempre vai ter conotação mentalista. Muitos dos exemplos citados são processos diferentes, envolvendo diferentes variáveis. Se vamos incluí-los na rubrica “autocontrole”, então todo comportamento operante é exemplo de “autocontrole”.
Não postulamos forças interiores maiores ou menores para explicar essas escolhas. Como bem escreveu Baum recentemente, o organismo é o local onde ocorrem as interações comportamento-ambiente. E é isso que estudamos, experimentalmente ou não. Todos os experimentos que dizem estudar o autocontrole no laboratório usam algum procedimento de escolha entre pelo menos duas variáveis. Não há como fugir da literatura sobre escolhas e preferências dos últimos 60 anos alegando implícita ou  explicitamente que “com gente é diferente”



quinta-feira, 10 de abril de 2014

Chomsky e sua sombra: já nascemos com a estrutura da língua que ainda vamos aprender?


O jornal Correio Braziliense de 09 de abril corrente traz em sua página de ciência artigo de divulgação da jornalista Roberta Machado com o título “Receita linguística” e chamada “Experimento feito na Inglaterra reforça a teoria de que vários idiomas criados pelo homem obedecem a alguns padrões universais”. Este texto poderia começar de outra forma não fosse a afirmação da jornalista:
O conceito de uma gramática universal surgiu há mais de oito séculos, mas só ganhou força a partir da década de 50, com a publicação de trabalhos de Noam Chomsky. Esse filósofo e linguista enfrentou o pensamento behaviorista ao defender a ideia de que toda pessoa nasce com a habilidade inerente de aprender qualquer língua no mundo.”
A reportagem cita declaração de Ana Paula Shcer, professora do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo (USP):
Há fatos ainda mais simples que confirmam a existência de uma linguagem universal. Uma forte evidência é que, aos 3 ou 4 anos, uma criança saudável já adquiriu sua língua materna: trata-se de um sistema muito complexo, adquirido muito rapidamente.”
Sobre o experimento base do artigo da jornalista, pesquisadores ingleses mostraram a predominância de adjetivos sobre numerais e sobre demonstrativos em voluntários ingleses que participaram do trabalho, e afirmam que isso é demonstrado em várias línguas do mundo (mas não em todas). Atribuem isso à genética. Haveria uma gramática universal que herdamos (e os que falam as línguas que são exceções? Herdaram o quê?).
Não é necessário postular a herança de toda uma gramática. O que a Análise do Comportamento tem mostrado é que aprendizagens baseadas em características de estímulos físicos são mais fáceis e são aprendidas antes que aprendizagens baseadas em relações entre estímulos (como “maior que” ou “menor que”) ou entre comparações entre múltiplos aspectos do ambiente (numerais, demonstrativos). A aquisição rápida de repertórios é demonstrada há décadas por pesquisas sobre relações de equivalência, área em que quatro universidades brasileiras se destacam internacionalmente: UnB, USP, e Universidades Federais de São Carlos (UFSCar) e do Pará (UFPa).
Ninguém questiona a ideia de que nascemos com habilidades para aprender, mas não é necessário levantar a hipótese de que nascemos com o cérebro pronto para aprender a língua. Uma regra importante em qualquer ciência é a de que entre duas explicações, ficamos com a mais simples. Não há dúvida que nascemos com habilidades inerentes ao aprendizado da língua. Milhões de anos de evolução da espécie humana nos legaram um sistema nervoso e estruturas anatômicas característicos do homem. Mas ao nascer ainda não temos prontos nem o sistema nervoso nem as estruturas anatômicas. A criança de três anos que domina a gramática da língua materna tem três anos de aprendizagem baseada no que herdou dos antepassados, mas a direção do que vai aprendendo depende muito das interações que tem com seu ambiente, a começar por sua vida no útero.


Nenhum behaviorista, nem Watson, postulou que o organismo é uma folha em branco para um texto escrito pelo ambiente. Esse é um boneco de palha levantado por aqueles que são felizes por não saberem que não sabem. Não é daí que vem uma rejeição de uma gramática universal pronta e acabada que a genética nos daria.

Ao nascer o bebê humano é em grande parte uma incógnita. Só não é um desconhecido total porque são notórias as principais características da espécie. Sabemos que são pequenas as probabilidades de vir a ter mais de 2,20 ou menos de 1,50 metros de altura, que seu peso manterá alguma relação positiva com sua altura, é bípede, mas levará algum tempo para ficar em pé, aprenderá a falar, mas para isso vai depender de ajuda e incentivo. Para sobreviver vai depender da mãe para alimentá-lo e garantir proteção, sua mera presença um sinal de segurança.
Em maior ou menor grau todo bebê humano nasce preparado para uma ligação especial com quem o protege e alimenta, a mãe, ou cuidador (a). A voz da mãe já ouvia antes de nascer, um som que vai fortalecer o apego. O traçado do rosto humano é outra característica do ambiente que nasce “familiar” - o bebê não reage a faces como estímulos novos. O leite materno tem tudo o que precisa, e a sucção do seio nem tem que ser deliberada – o reflexo já vem pronto.
Várias dessas características nem são privativas dos humanos. Mamíferos, especialmente primatas, têm muitas das características que gostamos de acreditar que sejam exclusivamente humanas. No caso dos cangurus os filhotes são até mais indefesos que os nossos bebês – entre nascer e estar no mundo passam meses dentro da bolsa de sua mãe, com acesso às mamas e à vista do que se passa lá fora. Os macaquinhos agarram-se reflexamente aos pelos da mãe, um reflexo que seus “primos” humanos perderam, sobrou apenas um resquício que costumamos observar em visita ao pediatra.
Ainda há muito a ser estudado na interação herança-ambiente. Postular que estruturas cognitivas já vêm prontas não é postura de uma ciência natural. O que já sabemos é que a quantidade e a qualidade das interações da criança até os três anos são fundamentais para seu desenvolvimento posterior. Ações governamentais para assistir crianças nascidas em famílias de baixo nível socioeconômico são inócuas quando começam apenas quando a criança já tem três anos.

A  teoria da gramática universal biologicamente herdada é tão disseminada que até os leigos a usam. Ao comentar que tanto meus netos brasileiros quanto os americanos passaram pela fase de regularizar verbos (o último exemplo vem do Luca, o caçula, dizendo para mim:”Mommy buyed a ball for me”), ouvi a explicação: olha aí uma prova da gramática universal do Chomsky. Dá vontade de perguntar: Já ouviram falar em generalização?

David C. Palmer publicou recentemente o artigo "The role of atomic repertoin complex behavior" na revista The Behavior Analyst, 2013, 35, 59-43. Recomendo a quem quiser ler mais sobre o assunto.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Os peixes, o curral e a guerra.

Assinada pelo jornalista João Marcos Coelho a Folha de São Paulo de 18 de fevereiro de 2014 publicou entrevista com o  sociólogo italiano Nuccio Ordine autor do livro “A utilidade do inútil”. Um dos trechos ilustra o que seria a cultura de um povo para a maioria de seus integrantes. O autor fala de dois peixes jovens nadando em uma direção quando encontram um peixe mais velho que lhes pergunta: “ Como está a água hoje?”. Os jovens continuam em frente e um pergunta ao outro: “O que é água?”.
Imagem semelhante foi usada pela analista do comportamento norueguesa Inguun Sandaker para se referir à cultura como o conjunto de normas, princípios e valores que regem sutilmente a vida em comum na sociedade. Em regiões que sofrem com o inverno rigoroso os agricultores costumam ter o curral em recinto fechado adjacente à casa. Quem entra no curral sente um cheiro muito forte, mas quem lá trabalha não sente mais o cheiro. Se alguém perguntar “Que cheiro é este?” poderá ouvir como resposta “Que cheiro?”.
As duas imagens ilustram o mesmo fenômeno: para quem é parte de uma cultura, o controle exercido pelo grupo, apesar de regular quase tudo que fazemos, é quase invisível. Quando entramos em contato com outro grupo, sentimos o cheiro daquele controle e vemos as pessoas nadando naquelas ondas sociais.  A psicoterapia tem efeito semelhante a esse mergulho no “aquário” social dos outros; o processo nos ajuda a ver a água que nos faz boiar e as correntes que ajudam ou prejudicam nosso percurso.
Um exemplo dramático de descoberta da “água” que nos  envolve é descrito por Tim O’Brien em seu livro “The things they carried” (www.marinerbooks.com). O autor serviu o exército americano na guerra do Vietnã na década de 70. Foi convocado; hoje o exército recruta voluntários. Era ótimo aluno no ensino médio. Poderia vir a ser admitido em uma das melhores universidades, com bolsa até, talvez. Mas a convocação mudou tudo; a única escapatória para quem não quisesse ir para a guerra era refugiar-se no Canadá. Tim O’Brien tentou esse caminho, chegou até a fronteira, estava em um barco a remo já perto da margem canadense, quando desistiu. A tradução do trecho a seguir é minha:
“Tentei sair do barco.
Agarrei a borda, me inclinei e pensei, Agora.
Chorei. Era simplesmente impossível.
Todos aqueles olhos voltados para mim – minha cidade, todo o universo – e eu não podia me arriscar a passar vergonha. Foi como se minha vida tivesse uma audiência, todas aquelas faces me olhando da margem do rio, e em minha cabeça eu podia ouvir pessoas me gritando. Traidor! me diziam. Vira-casaca! Covarde! Senti meu rosto vermelho de vergonha. Não podia tolerar isso. Não poderia aguentar a zombaria, ou a desgraça, ou o ridículo. Mesmo em  minha imaginação, com a margem a apenas vinte jardas, eu não conseguia agir com coragem. Não tinha nada a ver com moralidade. Era pura vergonha.
E aí eu cedi.
Eu iria para a guerra – iria matar e talvez morrer – porque estava envergonhado.
Isso era triste. E então sentei no barco e chorei.” 
(O’Brien, T. (2009). The things they carried. Pp. 56-57.  New York, NY: Mariner Books).


terça-feira, 1 de abril de 2014

Como reconhecer um analista do comportamento

Para o behaviorista um assunto muito rico e interessante é o uso de termos e conceitos por outros psicólogos quando oferecem explicações para comportamentos. Reconhecer que não temos resposta para uma questão é tão importante quanto saber a resposta; se não reconhecemos a ignorância fica difícil sair dela. É melhor ficar sem resposta para uma pergunta quando não se tem certeza da resposta. Isso vale tanto para o pesquisador estudando um fenômeno quanto para o profissional atendendo um cliente. A Análise do Comportamento não é uma teoria acabada, é um modo de buscar respostas. Ideias, conceitos e teorias, como resultados de comportamento humano, estão sempre submetidos ao processo de seleção por consequências, inclusive a teoria skinneriana dos três níveis de seleção por consequências.
Com certa frequência faz-se menção à Análise do Comportamento como Análise Experimental do Comportamento, um método, uma área, uma filosofia, uma tecnologia (por exemplo, o “método ABA” para o tratamento do autismo). Essa prevalência da parte sobre o todo se deve provavelmente a uma ênfase na experimentação. Supõe-se que o analista do comportamento manipula alguma variável independente e observa cuidadosamente o efeito em alguma medida do comportamento. A Análise do Comportamento tem alguns pontos muito distintos de outros que prosperam na psicologia, como pesquisas de laboratório animal com análise experimental do comportamento de indivíduos (n = 1) – mas não se resume apenas à análise experimental do comportamento de indivíduos, nem no laboratório, nem no consultório clínico. Sua marca mais distinta é a linguagem teórica, o cimento que une todos os tipos de atividades compreendidas sob essa rubrica, marca, ou o que seja.
            Experimentação com n = 1 é a grande contribuição de Skinner para a psicologia experimental dos anos 30 do século passado. Trouxe de seus estágios nos principais laboratórios de biologia de Harvard. Junto com a taxa de respostas por unidade de tempo e os esquemas de reforço intermitente, forma o trio de ouro de Skinner. Mas nem ele ficou só na análise experimental do comportamento de organismos individuais (n = 1). Logo de início em Ciência e Comportamento Humano Skinner mostrou como se pode avançar analisando exemplos da vida diária à luz da teoria. E é essa teoria, que começa a ser desenvolvida em O Comportamento dos Organismos (1938) e continua sendo desenvolvida até hoje, e continuará a ser desenvolvida pelas futuras gerações, a teoria que faz a conexão entre os diferentes campos de atuação da Análise do Comportamento: pesquisa básica, pesquisa aplicada, atuação profissional, análise funcional, análise conceitual, etc.
            A Análise do Comportamento é mais do que análise experimental. Ao escrever sobre o comportamento humano Skinner (1953) foi muito claro a esse respeito. Parafraseando Skinner, descrevo a Análise do Comportamento como um conjunto de atitudes, uma disposição para estudar comportamentos ao invés de lidar com o que alguém disse sobre o comportamento, uma vontade de aceitar os fatos sobre o comportamento mesmo quando esses fatos se opõem aos nossos desejos, uma disposição para ficar sem uma resposta até que uma satisfatória seja encontrada. É uma busca de ordem, de uniformidades, de regularidades, de relações funcionais entre ambiente e comportamento (Skinner, 1953, pp. 12-13). Uma ciência do comportamento trabalha com informações provenientes de várias origens: observações casuais, observação de campo controlada, observações clínicas, observação em instituições sob condições rigidamente controladas, e estudos de laboratório (Skinner, 1953, p. 37).
            Qualquer que seja a área, o objetivo, o método, o analista do comportamento trabalha com alguns conceitos básicos, suas ferramentas de ofício. O primeiro é o de contingência. Uma contingência é uma relação condicional entre eventos no ambiente afetando comportamentos respondentes, ou entre eventos no ambiente e comportamentos operantes. No laboratório o pesquisador controla e manipula contingências; na prática profissional o analista do comportamento identifica, analisa, modifica, ou ensina seu cliente a identificar, analisar e modificar contingências. O analista do comportamento reconhece que um estímulo pode ter múltiplas funções, como ser eliciador de respostas reflexas, reforçador (quando consequente) ou discriminativo (quando antecedente) de respostas operantes, e reconhece o poder multiplicador e o controle exercido por abstrações derivadas de contingências quádruplas bem como o papel de operações motivadoras e estabelecedoras.

            E o comportamento, o que é? O que é comportamento? Tudo o que a pessoa faz que possa ser analisado, inclusive o que ela diz, o que ela pensa, o que ela fala para si mesma, inclusive o que ela fala sobre o que pensa.